Ali não "estrova" ninguém!
Século XXI. Arredores de Lisboa. Oito da noite. Uma mulher na casa dos setenta anos, aspecto descuidado, dirige-se a mim perguntando se são cães que estão ali no quintal, onde me preparo para entrar e cuidar das cadelitas que alguém abandonou para morrer, a Lucky e a Chance. Respondo afirmativamente. Mais uma vez passa-me pela cabeça como é possível haver gente tão cruel que é capaz de abandonar um animal, um companheiro, à sua sorte, não entendo...
"Eu não sei ler nem escrever, mas eu também gosto muito de animais", responde com um sorriso que deixa entrever anos de fraca higiene oral.
A minha interlocutora queixa-se que os cachorros não deixam o marido dormir, quando ladram, como fazem os restantes cães nas outras casas da rua, sinto-me naturalmente responsável e tento imaginar uma solução possível, enquanto a mulher inicia uma verborreia descrevendo que, o marido estava a jantar, em casa, mas que a neta estava a chegar para lhe colocar a fralda, para ele ir dormir. Dormia no anexo da casa, perto da horta, do outro lado da rua, geminado com o meu quintal.
Tinha ali improvisado um quarto, uma cama. O marido dorme ali. Isolado da família.
"Sabe, é que o meu marido tem Alzheimer, e assim pode fazer o chiqueiro todo ali, que não "estrova" ninguém!"
A cada palavra fico lívida, incrédula com a descrição... Imagino o espaço exíguo onde cabe uma cama, e mais qualquer coisa que já nem ouvi, com pouca ou nenhuma luz, aspecto insalubre...
Enquanto ouço a descrição da mulher, quase em fundo... mostra-me aproximadamente a área do "quarto" e, estupefacta, vou confirmando as minhas suspeitas.
Pergunto-me vezes sem conta como é possível...?
De vez em quando, ouvimos falar na rádio, ou nos telejornais, que está alguém, uma criança, um adulto com alguma deficiência, numa localidade do "Portugal profundo", a viver em condições sub-humanas. Chocamo-nos com isso! Como é possível?!
É possível! Acontece! Acontece ali mesmo ao lado!
Estamos no século XXI, é facto, mas a verdade é que, infelizmente, a sociedade portuguesa está ainda muitos, muitos anos atrasada...
Claro que tem havido evolução, claro que existem mais portugueses alfabetizados, mas a iliteracia é ainda um grave problema na nossa sociedade.
Enquanto me ecoa nos ouvidos "Eu não sei ler nem escrever, mas eu também gosto muito de animais",... provavelmente gosta mais dos animais do que do marido... "é que ao fim de um tempo uma pessoa cansa-se"...
E o sol nasce e poe-se todos os dias, e a lua sobe, alta... e eu penso naquele homem, a dormir no anexo do outro lado da rua...
Há animais com vidas melhores!
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