sábado, agosto 26, 2006

Hoje o mar botou!

8h17m. Chego mais uma vez à praia para um passeio junto ao mar, absorvendo os suaves raios de sol, nascido quase há uma hora e a brisa morna de um dia que já se prevê quente!
Sobre o mar imenso, reflexos prateados cintilam na placidez aparente. Quem sabe que lutas se travam nas suas profundezas!
Alguns quilómetros depois, poucos, talvez 2, avisto ao longe um grupo de pescadores que puxam uma rede com exclamações de encorajamento…
- Anda lá! Que isto não quer ronha!!
À medida que me aproximo as vozes vão ficando mais e mais nítidas e ouço também as vozes das mulheres que ali vieram também ajudar. Uma aparenta ter já uma idade avançada enquanto com mãos sábias segura a rede com firmeza para mais um puxão.
Juntos, uma dúzia de pescadores e suas mulheres conseguem finalmente trazer a rede para a areia. Está pesada, sem dúvida!
O peixe salta e espalha areia por todos os que ali estão de roda, incluindo eu, que assisto também a mais uma luta inglória pela vida!
Cada um debate-se com a falta de oxigénio e abre as guelras o mais que pode na vã tentativa de sobreviver, tentando saltar de novo para o mar. Três vezes vejo os peixes debaterem-se com a rede que os prende, em vão.
Ouço uma das mulheres dizer em surdina:
- Hoje o mar botou!
Centenas de gaivotas voam na esperança de apanharem algum peixe mais atrevido que se afaste dos homens.
- Traz as caixas!
Um dos homens começa por cortar a corda e separar a rede para recolherem o peixe. E logo um punhado de homens separa robalos, douradas, sargos, cavala…
- Olha ali um polvo!
E logo se assiste a mãos hábeis pegarem no animal que ainda luta e se prende a 4 ou 5 peixes que se debatem, presos nas ventosas do animal.
- Olha peixe-aranha!
Cuidadosamente seguro pela cauda, que uma picada daquelas não é para brincar, aquele peixe é grande!
- Pensava que o peixe-aranha era pequeno – diz alguém que como eu assite deliciada a esta cena.
- Tanto peixe!
Exclama outro veraneante.
Um dos homens afasta-se da rede com uma mão cheia de cavalas e devolve ao mar, algumas conseguem recuperar forças e regressar à vida, outras são engolidas pelas gaivotas, de um só trago.
- Banco Alimentar Contra a Fome!? Onde é que eles andam agora? Tanto peixe que nem nós conseguimos levar, e onde é que eles estão agora?
Outra caixa de cavalas atirada Às gaivotas que voaram todas para junto de nós e gritam de contentamento por aquele banquete!
- Que desperdício! Ouço uma voz dizer.
Todos os dias são 10, 12 caixas de cavala para as gaivotas, também precisam de se alimentar diz uma das mulheres, rosto marcado pelo sol, sorrindo, de chapéu na cabeça e uma toalha enrolada à volta dos ombros – a madrugada na praia é fria e húmida e os ossos ressentem-se.
- Se nós lá fossemos levar eles aceitavam!
- Só faltava!
- E ainda pediam que lhes amanhássemos o peixe!
Vejo outra e outra caixa de cavala ser atirada às gaivotas que as engolem de uma só vez!
- Russo, tem calma com isso senão elas não comem!
- Comem, comem – responde um homem com a pele negra do sol e o cabelo ruivo queimado de sol
- Mas que rico banquete!
- O peixe não pode ficar aqui na praia a apodrecer e a cheirar mal – explica uma das mulheres perante o olhar incrédulo dos que assistem a tudo isto! E continua… - nós não podemos levar tudo!
Hoje o mar foi generoso e a rede veio carregada.
Vejo caixas de peixe serem levadas para o barco, enquanto os homens caminham pelo meio da rede cheia de peixe e continuam a separar o peixe em caixas
- Querem cavalas, podem levar, tirem à vontade que isto até é um desperdício!
- A cavala é boa de todas as maneiras, não quer levar? Diz-me a mulher de chapéu azul.
- Não tenho como, senão até levava, se há-de ir para as gaivotas!
- Eu vou ver se o meu marido tem ali um saco!...
- Ó Manel! Tens aí um saco? P’ra dar umas cavalas aqui a esta menina…
- No bolso do casaco responde uma voz num rosto dourado pelo sol.
- Trazemos sempre um saco connosco. Nunca se sabe quando é preciso! Quer que as escolha por si?
Agradeço enquanto vejo a mulher encher o saco de cavalas.
- Aqui tem! Isto é bom de todas as maneiras! Eu vou comer grelhadas mais logo! Estão melhores que as sardinhas! Mais gordas!
- E como é que as faz mais?
- Cozida com batatinhas e com um fio de azeite é muito bom… corta-se ao meio! É muito bom! Também se pode fritar e por em cima um molho de tomate. Eu faço de todas as maneiras… ponha um dente de alho e orégãos na água, fica muito bom!
Agradeço mais uma vez àquela mulher o saco de cavalas e as receitas…
E os homens continuam a separar os peixes.
As gaivotas já comeram todo o peixe que podiam, nem sei se conseguiriam comer mais! Afastam-se e ficam na areia a receber no bico a brisa que sopra de norte, em paz com os pescadores. Outras regressam ao mar e ali ficam pousadas, um mar de gaivotas…
Devagar, os observadores que ali se juntaram afastam-se um por um.
Algumas crianças mostram, triunfantes, um peixe aos pais.
- Olha este ainda está vivo!
Serão momentos que não irão esquecer ao longo das suas vidas.
Os homens continuam a distribuir peixe pelas caixas e por algumas gaivotas que ainda voam por perto.
Invade-me uma calma que já não sentia há muito tempo…
-Óh Manel tens a rede livre para lavar as cavalas da menina?
Assim já as leva lavadinhas! Quer mais? – Dirige-se de novo a mim.
- Obrigada, mas não quero que se estraguem.
E vai dizendo:
- Quem é que quer cavala, levem à vontade!
Chega o Manel com a rede e o peixe é lavado da areia e reposto no saco que também já foi lavado.
Volto a agradecer… sinto-me de novo a acreditar que existe qualquer coisa para além de mim… este pensamento traz-me mais alguma paz.

De alma cheia e com um sorriso nos lábios, afasto-me, de regresso ao local de onde parti.

São 10h22m, e vejo-me a sair da praia para ir a casa por o almoço. No caminho penso nos homens que comentavam descontentes a arrogância e ingratidão de algumas instituições que dependem da ajuda de terceiros… vêm-me à memória as toneladas de batatas que são enterradas, para apodrecer, entre outros desperdícios derivados de uma má gestão dos recursos naturais de um planeta que até agora tem estado do nosso lado. Penso nos milhares de refugiados e vítimas das guerras que continuam a alimentar os senhores da guerra e que morrem de inanição e de insalubridade!

Será que algum dia o ser humano conseguirá viver, de novo, em paz e em comunhão com o que o rodeia?
Talvez um dia! Não será certamente no meu tempo de vida.

Brindo, como sempre, à vida!

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1 Comments:

Blogger Thinker said...

uau este merecia estar numa revista!!!

quarta set. 06, 08:59:00 da manhã 2006  

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